domingo, 5 de fevereiro de 2006

Pensamentos de uma era

Correria

Plena tarde de uma segunda-feira, 35 graus. O som dos carros e dos vendedores ambulantes ultrapassa até mesmo o som de meus  pensamentos. Em um dia tranquilo, em um lugar tranquilo, eu conseguiria ouvir minha própria respiração, mas ouvir a buzina do automóvel que quase me atropela já é uma grande proeza.
Finalmente consigo subir à calçada, com o coração na mão e os nervos à flor da pele. Imagino que não há zoológico maior do que a própria sociedade humana, e me vejo perdido em escolher agir como minha espécie e insultar o descuidado motorista que desrespeita a sinalização, ou como um ser consciente, diplomata e esclarecido. Acabo não negando minhas origens. Motorista filho da p…
Prossigo em meu caminho, buscando alcançar o próximo estabelecimento de livros usados. Encontrar alguém que pague bem pela coleção completa dos contos de Machado de Assis já não é tão fácil. A cultura tem perdido seu valor, assim como nós mesmos temos perdido nossos valores. Não cheguei a ler toda a coleção, mas entre a camisa do meu time, a caixinha de cigarros autografada pela musa Ivete Sangalo e a coleção de contos, me decidi por vender os livros que ganhara ainda no ensino médio e nunca passara dos prefácios.
Engraçado, não encontro a tal loja de livros. O velhinho dos churros quentes havia me informado que era nessa rua. Estranho. Peço informações. Esclarecem-me que nesta rua não há loja alguma, apenas edifícios residenciais. O centro de compras do qual tinham conhecimento ficava a alguns quilômetros dali. Penso em talvez ir até lá, mas minhas pernas não concordam, estavam em atividade desde cedo.
Dezessete horas. Hora do jogo. Preciso me apressar para pegar a condução. Talvez dê tempo de parar e deliciar um pastel banhado em óleo na lanchonete do Juca, na próxima esquina. Mas não, perderei os saudosos cumprimentos do Galvão Bueno no início da partida. Convenço-me a ir pra casa logo e fazer uma omelete.
Embarco na condução lotada. Uma senhora se levanta para descer, quando me apresso e ocupo seu lugar. Não se passam nem cinco minutos e uma mulher grávida se posta ao meu lado. Não sei por que pobres ainda se dão ao luxo de ter filhos. Finjo um cochilo. Olho de rabo de olho, ela não está mais ali. Um senhor havia cedido seu lugar. Por sua postura, percebia-se que era um homem de fina educação. Sinto muito, meu velho, o mundo hoje não está pra favores, agora que se aguente em suas próprias pernas.
Olho pela janela. Vejo um grupo de ‘mauricinhos’ dirigindo um automóvel de luxo e vêm alguns impropérios em minha mente. Penso na humanidade que estamos construindo e tento entender onde tudo isso começou. Observo o momento ao meu redor, ouço tristemente os ruídos do fim do dia e me dou conta:
_ É, não se fazem mais gerações como a minha.
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