segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Triste Inspiração

A multidão se aglomerara em volta do corpo. A rua ficara intransitável. Carros, ônibus, camionetes, todos se viram obrigados a contornar a praça e realizar uma imensa volta para continuar seus destinos. A polícia chegara há alguns minutos. Tentava apaziguar a multidão que se formava, mas tornava-se cada vez mais impossível.
Uma garota estirada no chão, inerte, e a população curiosa presenciando o mais vivo dos “reality shows”. Uma menina ainda, cabelos castanhos curtos, magrinha, morena clara. Mais uma entre os milhares que chegariam ao necrotério aquele dia. O rosto coberto por sangue, coração que já não pulsava mais. O ar polúido ainda poderia correr por suas narinas, mas não mais produziria vida.
E pensar que horas antes, ela tirara o uniforme do colégio e colocara a roupa da moda. Assistira àquele seriado de romance adolescente, recebera uma mensagem de uma colega em seu celular e sorrira ao rever um amigo de infância. E pensar que minutos antes, ela pensara que mais tarde iria ao cinema com a galera da escola e faria um lanche rápido na sanduicheria da praça. E pensar que por segundos apenas, se tivesse tropeçado no lixo jogado na calçada, ou se tivesse deixado cair uma moeda, ou se um bêbado tivesse lhe proferido algumas obscenidades e ela tivesse se voltado para olhar furiosamente, talvez assim o ônibus lotado teria passado velozmente, rumo à periferia, aos centros comerciais, ao bairro universitário, ao shopping, sem grandes impressões.
Mas não, nada disso aconteceu. Enquanto talvez pensasse que já era hora de começar a analisar que curso escolheria em uma faculdade, ou em ir à procura de um emprego de meio período para pelo menos poder comprar os produtos que a sociedade lhe oferecia, não verificou que o semáforo estava fechado para os pedestres. E tranquilamente, sem preocupações, sem grandes anseios, sem medo, ainda espirituosamente confiante na vida e na humanidade, ela dera o primeiro passo. Antes mesmo que seus pés tocassem o chão, fora levada pelo ônibus em alta velocidade. Esmagada, como uma folha de papel inanimada. E aquele objeto, que outrora possuíra vida, ritmo, movimento, agora se via estirado, imóvel, impassível.
Incrível como segundos mudam tudo. E os planos para daqui duas horas, para amanhã, para daqui dez anos, são deletados e esquecidos.
A polícia terminara o inquérito, a multidão saciada de entretenimento vivo se dispersara. O trânsito, aos poucos, retomou seu ritmo, as chuvas lavaram as ruas. A família viveu seu luto e o escritor deu vida à sua pena.
rosas

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